Qual é o limite da arte?, com Stephen King e Sociedade dos Poetas Mortos

5.0.2

Poucas coisas são tão difíceis quanto começar a escrever um texto sobre um livro que você amou ler. Eu vou dizer o porquê: quando você escreve, passa a se ater a detalhes de um livro que o olhar de leitor não absorve. A métrica, sonoridade das palavras, escolha dos adjetivos; hábitos e vícios do escritor. E, lendo um livro que você ama (porque não vou entrar no mérito de boa ou má literatura – pelo menos, não por enquanto), isso se torna ainda mais difícil. Amar literatura é amar uma parte de si. Minha tia diz que aquilo que representa seus gostos pra literatura, cinema e arte dizem muito sobre quem você é – ou quem gostaria de ser.

Trocando em miúdos, a arte é uma coisa egoísta: quem faz, retira de si e, quem consome, enxerga a si mesmo. Espelhos.

Pois bem, vamos em frente: eu li “Sobre a Escrita“, do Stephen King.

O Stephen fez sua vida na escrita. Aos quatorze, conforme conta no livro, o prego que havia colocado na parede para estocar as cartas de recusa das editoras já não mais aguentava a quantidade de papéis. Ao invés de desistir, colocou um prego maior e continuou a escrever. Ele nunca desistiu. Diziam que deveria mudar as palavras, o tom, a história, o final. Não mudava. Começava do zero, reescrevia, criava novos universos e histórias.

Num determinado ponto do livro, nos diz que devemos colocar a mesa de trabalho no canto do quarto. E aí, todos os dias, antes de sentar para trabalhar, nos lembrarmos do porquê dela não estar no centro.

“A vida não é um suporte a arte. É exatamente o contrário.”

Isso faz com que questionemos diversas coisas.

No filme Sociedade dos Poetas Mortos (lançado nos anos 90, com Robin Williams e Robert Sean Leonard), vemos um professor que abriu mão da vida em prol da arte. Na história, Sr. Keating (personagem do Robin) é um ex-aluno do colégio em que leciona. Este colégio é interno, exclusivo para garotos e tem tradicionalismo e conservadorismo como componentes do quadro de funcionários permanentes. São rígidos, regrados: prontos para criarem médicos, advogados e, no máximo, professores. A literatura era ensinada como martírio e a poesia, nunca pelo significado, sempre pela métrica. Transformavam a arte em produto de análise para que não instigassem a criatividade e a produção.

John Keating foge disso.

Ensina seus alunos a escreverem, pensarem, produzirem. A não serem simplórios. Em uma das aulas, diz: “Não lemos poesia porque é bonitinho. Nós lemos e escrevemos poesia, porque somos membros da raça humana e a raça humana está preenchida com paixão. E medicina, o direito, administração, engenharia: essas são profissões nobres e necessárias pra manter a vida. Mas a poesia, a beleza, o romance, o amor… essas são as coisas pelas quais estamos vivos”.

Este trecho é um dos mais famosos do filme e me leva à uma grande dúvida: quem está certo? Stephen King, que coloca a mesa no canto; ou John Keating, que sobe nela?

A arte na vida do Stephen King é presente e real.

Num determinado ponto do texto, fala para o leitor (porque o texto todo tem tom de conversa e nos sentimos próximos dele como se ele estivesse nos chamando pelo nome) que o maior compromisso do escritor para com o leitor é o de dizer a verdade. Se o escritor troca seu “merda” por um “droga” polido, está preocupado com a Legião da Moral e dos Bons Costumes e, no fim das contas, rompe o contrato de ser verdadeiro. O escritor precisa ser verdadeiro e lembrar ao leitor que, fora da ficção, os nossos personagens não são os piores vilões ou os melhores mocinhos. Não existe essa polaridade na vida real. As pessoas possuem camadas, qualidades, defeitos, vontades e desgostos. E tudo isso se une e cria um ser humano real, personagem principal de sua própria vida.

O compromisso com a verdade de King o faz criar personagens palpáveis que nos levam a pensar: como eu posso gostar de alguém tão repugnante?

O compromisso com a arte de Keating faz com que ele instigue seus alunos a criarem a partir de suas mentes: deixando que a poesia saia deles sem o filtro do julgamento.

Quem está certo?

King possui esse pensamento, porque durante muito tempo bebeu caixas e caixas de cerveja para poder escrever. Eu não julgo seus métodos: cada um tem os seus. O meu causa um pouco menos dano ao fígado.

Sinceramente, eu não sei. Sei que quando sento pra escrever na minha mesa, que fica no canto do quarto, respiro fundo e despejo nas palavras o que não cabe em mim. E, depois, lapido as ideias, moldo as palavras, troco adjetivos, escolho substantivos específicos e adiciono as crases que nunca sei onde colocar. A minha vida depende da minha produção artística. E a minha produção artística depende do que acontece na minha vida.

A minha tia tem mesmo razão. Nós somos espelhos.

A poesia da contradição escrevendo uma coletânea vitalícia de histórias que vivi e inventei.