É sobre Jane Eyre e um Gênio Indomável

Nada fala mais sobre um ser humano do que seu gosto para livros. Filmes. Música. Obras de arte, hobbies e passatempos.

Nada fala mais sobre um ser humano do que a forma como ele escolhe gastar seu tempo.

Por isso, eu, Gi Marques, que de hoje em diante escrevo aqui no Crônicas quintafeiralmente, escolhi me apresentar falando sobre o que gosto, não sobre mim.

A literatura vitoriana é uma coisa engraçada, já que fala-se muito do cotidiano e descreve-se ainda mais. Mas as histórias todas possuem o mesmo início e desfecho: do lixo ao luxo. Também não quero luxo, nem lixo – como Rita Lee, meu sonho é ser imortal, meu amor.

Imortalidade, esta coisa abstrata que se mantém na sobrevivência cotidiana. O que é a eternidade senão a capacidade de permanecer em vida todos os dias? A eternidade também acaba.

A personagem principal que dá nome ao livro escrito no século dezenove, Jane Eyre, é uma menina pra lá de injustiçada. Os pais morrem, a gente não sabe como, não entende muito bem o porquê. Ela mora com essa tia horrível que tem filhas horríveis que a tratam muito mal. Ela, sob a óptica dessas pessoas horríveis, é mal educada, ingrata, chata e todos esses adjetivos péssimos que costumamos dar pra pessoas que não fazem o que queremos.

Sai de lá, vai pra um orfanato que também não é uma Mansão Foster para Amigos Imaginários, mas, pelo menos, não tem ninguém que a trate como o pior de todos os seres humanos da face da terra.

Jane completa a maioridade, precisa sair do orfanato, arranjar uma profissão, seguir sua vida – o que, naquela época, seria casar, ter filhos, obedecer ao marido e morrer. Por isso, acaba se tornando governanta da casa desse bom partido, sr. Rochester, que é muito misterioso e ninguém sabe muito bem por onde anda, o que faz, de onde arranja todo o dinheiro, com o que gasta o que não está à vista etc.


A grande graça de Jane Eyre, que é também o coloca entre os meus livros preferidos, é que a Jane e o sr. Rochester – obviamente – acabam tendo um envolvimento amoroso. Jane, ainda pobre, abre mão do amor que sente por ele para não ser a coitada, moça, pobre dependente do marido rico, generoso e maravilhoso que faz de tudo para protegê-la, oh céus, oh vida, oh god, oh my.

Ela sai da mansão e vai atrás de si e isso é a coisa mais bonita que uma personagem – sobretudo da era vitoriana – poderia fazer. É um risco, um pulo pra fora da caixa com os dois pés sem saber se tem chão pra te segurar. E tinha.

Mas vamos conversar sobre a era vitoriana: o machismo social era tão intrínseco que Charlotte Brontë, a autora, precisou publicar o livro (no dia que viria a ser meu aniversário, aliás!!!!!!!!! <3) sob um pseudônimo masculino para que seu texto não fosse desvalorizado.

Progredimos? Quantos livros escritos por mulheres você leu? E por homens? Leia mulheres!

Assim como a Jane, um dos personagens principais de Good Will Hunting (ou Um Gênio Indomável), Chuckie (representado pelo Matt Damon) toma uma atitude um tanto quanto drástica. O filme é mais recente, foi lançado no final dos anos noventa, mas cabe bastante pra falarmos sobre riscos.

A história dele é um pouco mais simples. Ele tem uma história de vida esquisitíssima: violento, mas extremamente inteligente, ele acaba se metendo numa briga e vai pra prisão. Trocando em miúdos, resolveu uma equação dificílima e o professor que a escreveu decide que vale o risco de tirá-lo da cadeia pra poder desenvolver essa inteligência. A condição é que ele vai precisar passar por um psicólogo, semanalmente.

Esse psicólogo é ninguém mais, ninguém menos do que o Robin Williams, sem horas e sem dores.


E aí a história começa a ficar superinteressante, porque o Sean (psicólogo) e o Chuckie (personagem do Damon) acabam se dando mal logo de cara. E o Sean, pra poder alcançar esse moleque tão quieto, conta coisas sobre si, sobre um amor perdido e uma vida inteira de concessões voluntárias.

Essa situação os aproxima e Chuckie vai aprendendo a abrir mão das suas reclusões para desenvolver sentimentos, mantê-los, falar a verdade e assumir riscos.

O filme todo fala sobre assumir riscos.

E Chuckie corre riscos tanto quanto Jane corre riscos. E os dois personagens só conseguem arriscar, porque passam a se conhecer. Chuckie, através do psicólogo. Jane, através dos anos em locais que a obrigavam a aproveitar a sua própria companhia.

A gente aprende, quando assiste Um Gênio Indomável e lê Jane Eyre que, quem não olha pra dentro, não enxerga do lado de fora. Quem não olha pra dentro não mede até onde a perna vai, não entende o alcanço do braço, não sabe o que cabe na mão.

E é preciso olhar pra dentro e arriscar do lado de fora para, todos os dias, ser eterno, meu amor.

A poesia da contradição escrevendo uma coletânea vitalícia de histórias que vivi e inventei.