Perto do coração selvagem de Clarice Lispector

Sagitariana.

Culpando os astros, Clarice se dizia metade bicho, metade Mulher, conforme é contado na biografia “Clarice,” escrita por Benjamin Moser. Desde que a li pela primeira vez, abracei a música da banda “Ira!” como verdade e bradei aos quatro cantos: Tento me erguer às próprias custas e volto sempre pros seus braços.

Clarice é casa. É inquietação, indignação, sentimentos que você nunca imaginou ser capaz de sentir. A autora ucranobrasileira (só a família Lispector tem essa nacionalidade) te faz questionar até onde suas verdades são verdades, até onde vai seu punho, sua fé, sua moral. Ou melhor, te faz questionar: até onde estou disposto a ir?

O cunho pessoal dos livros nos leva a sentar na mesa com ela, um copo de uísque cowboy e, olhando nos olhos, ouvir uma história sobre si mesmo que você nunca quis saber. Clarice é uma roleta russa apontada só para você.

Em “Perto do Coração Selvagem”, seu primeiro livro, traz uma personagem chamada Joana que é muito parecida com quem ela mesma era quando mais nova. Isso é comum para iniciantes: usam sua própria vida como base para suas ficções. Sua personagem é irritadiça, arisca, inteligente, ácida. Faz poemas sobre minhocas e o sol que valem mais do que tudo que jamais escreverei.

Te faz uma pergunta simples: “ser feliz é para se conseguir o quê?”

Tá aí: um tiro.

Meu autor preferido, de quem falei aqui no Crônicas em fevereiro, Caio Fernando Abreu, contou em carta que, quando a conheceu, não conseguia fazer nada que não chorar. Só conseguia chorar de lavar a alma, porque a complexidade e a realidade fria com a qual tratava a vida eram palpáveis e isso doía em alguém tão sentimental e vívido quanto Caio sempre foi.

Clarice admirava-o. Clarice lia e escrevia muito. Passava dias escrevendo, parando para uma ou duas refeições esporádicas. Escrever era alimento, impulso.

Clarice foi um livro complexo como suas obras, inteiro como sua história, multifacetado seus personagem e certeiros como suas criações. Uma mulher de imposições que criou em si a liberdade de ser e escrever qualquer coisa.

E, por isso, se tornou alguém que intensificou-se e impregnou-se em tudo o que escreveu.

Clarice é sempre minha escolha quando nada mais parece certo: tento me erguer às próprias custas, mas volto sempre pra ela.

A poesia da contradição escrevendo uma coletânea vitalícia de histórias que vivi e inventei.