Somos todos cronistas
A crônica é a repercussão escrita do presente. Todo mundo é um cronista em potencial, ponto. Você já relatou, no seu perfil do Facebook, alguma situação inusitada do seu cotidiano? Parabéns, você é um cronista.
Sei que temos uma tendência à autocrítica, mas precisamos aprender que retratar o pessoal é uma forma muito bonita de fazer poesia (prosa, crônica ou o gênero que for). Todos temos belíssimas histórias pra contar. Precisamos delinear o como, só.
Veja, você conhece o canal Porta dos Fundos. Não foi uma pergunta, sei que conhece. Pois bem, o Gregorio Duvivier, o baixinho meio-loiro, gordinho, ex-atual da Clarice Falcão, também é um ótimo cronista. Ele faz crônica sobre tudo.
Pouco tempo atrás, mais ou menos nessa época do ano passado, fez uma crônica sobre os seriados e a vida. A crônica se chama “Spoilers” e está no livro “Put Some Farofa”, que foi lançado ano passado pela Companhia das Letras.
Nessa crônica, ele fala uma verdade daquelas que doem o peito: o escritor da vida é preguiçosíssimo. Pessoas queridas morrem, somem, saem pra comprar cigarros e não se prezam a voltar. Passamos a temporada inteira sem ver nada acontecer e acontece tudo no último episódio, de uma vez só. No fim das contas, continuamos assistindo, porque a vida, mesmo que chata, monótona e entediante, é a única coisa que está passando.
A relação entre os seriados, seus roteiros e nossas vidas é palpável. Nossos dias dariam belos episódios produzidos pela HBO. Ou então, aos mais loucos por palavras como eu, um belo livro.
Provavelmente escrito por Antonio Prata.
Antonio é filho do Mario Prata, um escritor brazuca renomado e de história estabelecida. O filho teve a quem puxar.
Também escreve crônicas ótimas. Uma das minhas preferidas chama-se “O Piano” e está no livro “Meio Intelectual, Meio de Esquerda”, que saiu pela Editora 34.
Na crônica que citei, fala sobre livros que nos caem na cabeça como um piano. Enorme, aparecendo sem você esperar. O livro que cai na cabeça dele e o faz escrever a crônica é o famigerado “O Apanhador no Campo de Centeio” [The Catcher In The Rye], do J.D. Sallinger.
É engraçado como cada livro tem um efeito pra cada um. “O Apanhador…” é um livro ótimo. Um adolescente reclamão claramente descontrolado emocionalmente e suas muitas aventuras quarto afora (porque, quando você é adolescente & reclamão, seu quarto é seu mundo). O personagem sai do quarto e vai encontrar o mundo inteiro. Ele tem mãe, pai, amigos, uma irmã – Phoebe – que sente sua falta.
Só quem já foi como aquele personagem entende o que é a vontade incontrolável e a necessidade inexplicável de sair do mundo do quarto.
O quarto é imenso se você se contenta em olhar só pra dentro. Mas o mundo todo é muito grande pra se contentar com as quatro paredes entupidas de pôsters. Você consegue entender?
Não sei qual é a história de Antônio, mas posso te dizer que imagino que ele tenha sido um desses adolescentes que só olhavam pra dentro. Aí você lê “O Apanhador no Campo de Centeio” e vê um personagem que sai do quarto e vive mil coisas e aprende mil coisas e faz um milhão de coisas. É um piano na sua cabeça.
Essa é a graça da crônica: você imagina o que o autor passou pra escrever aquilo ali. E é tudo uma grande hipótese, porque a autobiografia e a ficção andam muito próximas no ambiente de escrita – e é direito do leitor ficar em dúvida.
Talvez o Antônio nem tenha passado por nada. Talvez o Gregório só tenha assistido Um Maluco no Pedaço quando ainda passava no SBT, uns dez anos atrás (estou ficando velha). Talvez eles tenham escrito baseando os pensamentos em algo que aconteceu há vários anos. Talvez tenham escrito baseados só no que ouvem. Talvez Clarice assista séries e conte tudo pro Gregório. Talvez tenha sido a esposa do Antônio quem tomou um piano na cabeça lendo a história do Holden. Talvez Antônio tenha saído por aí fazendo um mochilão pelo mundo e nem ficava em casa o suficiente pra ter tempo de colar pôster na parede.
Ler uma crônica é ler um pedaço do escritor que talvez nem seja real. Ler uma crônica é, necessariamente, ler uma versão do autor que poderia ser ou poderia ter sido, mas, não necessariamente, é. Entende?
A magia da crônica está justamente na pessoalidade irreal que se cria no ambiente da primeira pessoa.
Eu mesma sou cronista. Você tem certeza de que li estes livros? E se não? E se só joguei no Google e fiz um pouco da lição de casa pra escrever esse texto de hoje?
Você nunca terá certeza.
E, se tiver, estará lendo um diário, não um livro de crônicas. E vou te contar um segredo: o irreal é muito mais divertido.