RESENHA | Outros jeitos de usar a boca

RESENHA | Outros jeitos de usar a boca

Uma honestidade implacável. Experiências vívidas, livres de métricas e amarras da linguagem. Palavras cruas, despidas de armaduras: uma vulnerabilidade que, inesperadamente, se torna poética. É com isso que o leitor se depara nas páginas de “Milk and Honey”, que chegou ao Brasil sob o título de “Outros jeitos de usar a boca” pela editora Planeta.

Rupi Kaur, a autora, nascida na Índia, mudou-se para o Canadá ainda pequena com a família. A poeta e artista plástica assina todos os escritos e ilustrações da obra, que já vendeu mais de 1 milhão de cópias nos Estados Unidos, se tornando um recorde do gênero nas últimas décadas. Ela traz à tona temas como a feminilidade, o abuso, a perda e a sobrevivência – temas que tocam e se relacionam com a vivência de todas as suas leitoras.

A obra é dividida em quatro partes. A primeira “Dor”, nos leva a uma parte mais sombria das memórias de Kaur – um eu poético que luta com seus monstros, à medida que rememora experiências violentas e tenta superar os empecilhos em sua relação conturbada com a própria família. É aqui que entendemos as raízes mais profundas de seus fantasmas. É, na verdade, o que torna esse livro um grande fenômeno: o quanto é possível se relacionar com as batalhas travadas em cada poema – e reconhecer, em cada uma delas, um pouco do que enfrentamos.

A estilística de Kaur dá um impacto ainda maior nessa seção da obra: seus poemas, em grande maioria curtos e despidos de excessos no que diz respeito à linguagem, são fascinantes e assustadores ao mesmo tempo. Aqui, não há tabus e atenuações: as experiências são o que são, todas postas à mesa, sem mistérios.

A segunda parte, “Amor”, representa uma mudança brusca e surpreendente de tom. O eu poético, em meio às suas batalhas internas, encontra um outro que lhe permite abaixar as próprias muralhas. Os poemas são mais leves e delicados, e o leitor pode sentir, em cada palavra, uma atmosfera diferente – mais realizada – nas páginas que lê. Novamente, é possível se relacionar com as vivências postas à nossa frente – quem nunca se deparou com um amor explosivo, sublime, que abre espaço para todas as vulnerabilidades: um amor que fosse redenção?

O grande ensinamento de Kaur, entretanto, é justamente esse: não há como se redimir por amor ao outro – apenas por si. E é assim que entramos em “Ruptura”, é a terceira etapa na jornada.

Nessa fase, o relacionamento nutrido em “Amor” desmorona. O eu poético toma a difícil decisão de partir e romper com o que foi construído, pois não encontra completude em si mesma. O processo de lidar com essa perda, entretanto, é doloroso. Novamente, Kaur retorna a um tom mais sombrio e imersivo – e nós, junto a ela, tentamos reconstruir os pedaços de uma auto-estima e auto-percepção ainda frágeis. Aqui, a mensagem é clara: o autoconhecimento é essencial.

“Cura” são os últimos passos que levam ao fim dessa jornada. Se há uma palavra que pode definir essa seção da obra, ela é “empoderamento”. Aqui, o aprendizado é coletivo – nós, mulheres, enxergamos nossas próprias jornadas com mais clareza e nos deparamos finalmente com a redenção. Junto à Kaur e ao eu poético, aprendemos a perdoar nossa vulnerabilidade e nossas fraquezas. Expiramos, enfim, ao entendermos que não somos eternamente as marcas que ficam em nós. Nossos traumas, nossos fardos, os estigmas que carregamos simplesmente por existirmos como mulheres – eles nos tornam mais fortes.

Outros jeitos de usar a boca é uma leitura transcendente em muitos sentidos, especialmente para leitoras – mas para todos, independentemente. É uma obra que nos ensina a encontrar delicadeza nas partes mais sombrias de nossas memórias, e transformá-las em crescimento. São versos revolucionários, empoderadores, que nos guiam por uma jornada de autoconhecimento a cada página. E, à medida que subvertem os diversos olhares que recaem sobre a mulher, mostram-na como ela deve ser a pessoa mais importante de sua própria vida.

 

+ RUPI KAUR, A MULHER E A LITERATURA 

 

Outros jeitos de usar a boca

Outros jeitos de usar a boca | Rupi Kaur, a mulher e a literatura
Autora: Rupi Kaur
Páginas: 208
Editora: Planeta
Preço sugerido: R$ 29,90
Formato: 14 x 21 cm