A poesia marginal de Ana Cristina Cesar
“A poesia é a única alternativa ao mundo horrível em que vivemos”. Esta fala é do Arnaldo Antunes, mas vou utilizá-la para falar de uma poeta que, ao contrário dele, nunca esteve nos holofotes.
Ana Cristina sempre esteve à margem. Mulher, carioca, poeta, problemática até o último fio de cabelo: seu dom sempre foi utilizar as palavras. Como característica principal de sua poesia, a autenticidade.
Há três ou quatro anos, a Companhia das Letras lançou um compilado de toda a sua produção literária acrescido de um apêndice com citações de seus amigos sobre ela, textos escritos para ela, considerações sobre ela. Criação e criatura, no mesmo lugar.
Com seus jogos de palavras e indagações afiadas, o tempero de sua poesia era a avidez com que Ana levava a vida. Sentia tudo, sentia muito. Se deixava sentir.
Multifacetada, descreveu seu caráter num poema:
Samba-canção
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí:
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…
*
Sua vida na escrita começou cedo – no colégio, seus textos ganhavam nota dez e elogios. Tão bons que entraram para o livro “Poética”. Tão bons que recebem, também de seus leitores, nota dez. Ana Cristina nasceu com as palavras escritas na ponta do dedo e dedicou sua vida à arrancá-las, uma a uma.
Transgressora, forte, incomum: marginal. Ana Cristina carrega consigo todo o peso de uma geração presa em seus costumes e esbraveja liberdade em cada um de seus versos.
Amissíssima de Caio Fernando Abreu, fez chorar o poeta quando escolheu deixar a sua inquietação interna tomar conta de si. Suicidou-se. A história, Caio contou no mesmo ano para a Cultura: “Em outubro vim a Porto Alegre lançar o meu Triângulo das Águas, muito influenciado por ela. Ao entardecer de um começo de novembro, nossa amiga Maria Clara Jorge ligou do Rio dizendo exatamente: “Caio F. , a Ana C. conseguiu.” Surpresa nenhuma, há um ano ela jogava aquele xadrez bergmaníaco com a morte. Sabia que era cedo demais; sabia que viraria mito; sabia que mais que uma atitude existencial, era uma atitude literária. Mas ousou. Senti dor e raiva por ela nos ter abandonado tão brutalmente no meio do caminho, deixando aquela sensação de que poderíamos ter feito alguma coisa. Tão arrogantes: quem tem, afinal, o poder de salvar o outro de seus próprios abismos?” (Clique aqui e leia o texto completo)
ACC, como ficou conhecida, era cheia de abismos. Sua poesia tinha a profundidade de um e, por isso, até hoje, provoca quedas em almas ensimesmadas. Uma poeta para se reler todos os dias. Um texto para se ler do peito pra dentro. Você só vai entender as palavras dela quando entender as que estão presas na ponta dos seus dedos.
Ouso dizer que Ana Cristina produzia poesia para poetas. Por isso, quando se foi, deixou saudade e a vontade latente no peito de todos os escritores que arranquem os poemas de seus próprios dedos.
*
Ausência
Por muito tempo achei que ausência é falta
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços
Que rio e danço e invento exclamações alegres.
Porque a ausência, esta ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.
(Carlos Drummond de Andrade, para Ana Cristina Cesar)