Caio Fernando Abreu, para além do “que seja doce”
Hoje, vinte e cinco de fevereiro de dois mil e dezesseis, completamos 20 anos sem Caio Fernando Abreu. Gaúcho-quase-chileno, natural de Santiago com um sotaque fortíssimo que só o sul brasileiro tem, Caio nasceu em setembro de 48 (virginiano!) e deixou em sua obra a pessoalidade que nenhuma escrita jamais alcançou. Morou em Porto Alegre, em Sampa, em Londres, Paris. Passou fome e fez aleluia com dinheiro. Uma vida de eletrocardiograma, com altos e baixos e de tirar o fôlego.
Caio escrevia sobre sexo. Sobre dor. Sobre ódio, amor e angústia na mesma proporção. Caio falava da ausência de paz do cotidiano paulistano, da frieza da Augusta, das vidas inutilizadas como piches nos muros. Das pessoas que ninguém via. Da individualidade de todos eles. Da vida por trás do cinza.
Pra falar sobre Caio, ouço Nara Leão. Ele adorava Nara, Sting, Erik Satie, jazz mudo e, tenho certeza, adoraria ouvir as tecladas de Hugh Laurie nos pianos.
A escrita de Caio é muito específica, é possível identificá-lo nos textos sem qualquer referência bibliográfica. Ele teve fases, mas sua literatura é facilmente reconhecida pelas palavras utilizadas e pela repetição. Repetia, recriava, se preocupava com o som das palavras: encontramos no texto dele características que não encontramos em muitas músicas.
Lia muita poesia, ouvia canções de amor, chorava paixões. Caio expunha sua vida à quem quisesse ouvir. O livro de Cartas (esgotadíssimo, saiu pela Aeroplano e nunca mais reeditaram, não tem em sebo, não tem na EstanteVirtual e as bibliotecas sequer deixam retirar com medo de roubo – a última parte é mentira) é uma biografia como jamais seria possível escrever. A Paula Dip até tentou em “Pra Sempre Teu, Caio F.” e fez um belíssimo trabalho, mas nada se compara à veracidade exposta nas cartas de Caio para seus amigos.
Numa delas, escreve que “é preciso ter infinita paciência. Olhar meigo para tudo & todos. Humildade, decência, recato & pudor. A um passo da santidade”. Em outra, já expele ódio e vontade incansável de fugir do mundo e se esconder no quarto.
Caio era um escritor escondido no quarto numa semana, exposto nos palcos na outra. O seu romance “Onde Andará Dulce Veiga?” é quase autobiográfico. O protagonista não tem nome: pode ser você, eu ou ele. Um jornalista atrás de uma matéria que fala mais sobre si do que sobre o fato: a busca por alguém que sumiu. O Caio se desmembrou e colocou uma parte de si em cada um dos personagens. Um deles se chama Pedro. Pedro está presente no livro inteiro, na canção “bilhetinho azul” (do Cazuza – que também tem uma história com Caio), no coração do protagonista – meu, seu, dele.
Caio fala da morte, da verdade, da mentira, utiliza palavras enormes: tudo, nada (essa frase também é de um conto dele).
Caio é o único autor cujo nome você pode, deve, repetir mil vezes ao citar para que se fixe. Caio nos traz a decadência humana e o mais elevado dos dias de vida. Ele escreve como quem canta “I pray everyday to be strong, but, I know what I do must be wrong”(Bourbon Street, do Sting), como quem ensina e como quem pede socorro.
Multifacetado, real, pretensioso. Na vida pessoal, um chato. Paula Dip diz em “Para Sempre Teu, Caio F.” que ele era o tipo de pessoa que pede pra ser convidado pro evento com cara de cachorro pidão e um sorriso irrecusável. Irrecusável, não pela simpatia e carisma, mas pela preguiça da chatice que viria a seguir caso não estivesse presente onde todos estão.
Astrólogo por curiosidade, passou vinte anos da vida jogado aos astros, tentando entender seus porquês. Muito, muito, muito curioso.
Um autor que escreve pra todos nós, sobre todos nós. Ele sempre procurou sentido nas coisas e escrevia sobre suas tentativas – falhas – de autoconhecimento. Tentou o cristianismo, budismo, filosofia oriental, astrologia, tarô – chegou até tentar a natação.
O que ele nunca percebeu (e isso é um defeito nosso: a gente olha tanto pra fora que esquece de olhar pra dentro), o que ele nunca percebeu é que a resposta pra todas as perguntas que ele tinha estavam sendo escritas a cada dúvida que ele colocava no papel. E, hoje, vinte anos depois do fim das dúvidas, a gente enxerga a resposta quando se dispõe a lê-lo. A obra dele é uma enciclopédia de todas as coisas que poderíamos ser.
E, com sorte, um dia seremos.